Ao espelho
A dada altura será de considerar a possibilidade de uma etiologia patológica, digo-me ao espelho enquanto aparo a barba. Se eu visse alguém tricotando um pequeno casaco para, no final, constatar que não lhe serve, desmanchar todos os nós e apertos, todos os fios de lã, para retornar a começar tudo, verdadeiramente do zero, para passadas horas longas reparar que o casaco uma vez mais não serve, ou, servindo, é puramente horrendo, ou causa uma grande comichão, e se este ciclo se repetisse vezes infindas numa ânsia crescente mas, ainda assim, metodologicamente tranquila, um berro de desespero que é uma gota num lago pacato de conformidade, se eu visse esse alguém eu daria conta e tomaria nota e desenharia uma abordagem clínica. E no entanto é isso que tenho feito da minha vida. Este fato aperta-me nos ombros, também na cintura, faço alergia nos colarinhos. Abro muitos separadores e não leio nenhum deles. Maltrato os amigos. Olho no escuro para as luzes dentro das janelas dos outros. Olho-me nos olhos apenas quando aparo a barba e deixo-me ir, até à próxima, o calor apertado das mangas ligeiramente curtas, a fivela do cinto, o relógio igual ao de todos os outros, as mesmas horas lá dentro, e olhando para este fato, para esta vida, não vejo nele motivos para caminhar confiante ou para me levantar durante a conferência para dizer seja o que for. Realmente nada tenho a dizer que seja novo, ou que tenha uma forma interessante, que faça pensar ou que alimente a alguém uma sede qualquer. Até escrever tem sido como reparar, já longo caminho andado, que me falta uma perna ou um braço. Abro o jornal para me informar e confesso que não aprendo nada. Há milhões de letras que não significam nada. O que raio nos fizeram do futuro?