O grande medo do medo
Em período eleitoral abanam-se as bandeiras. Fiquei a saber que o jovem Astrojildo Pereira, que viria a fundar o Partido Comunista Brasileiro, foi com 18 anos visitar Machado de Assis no seu leito de morte. Sem conhecê-lo pessoalmente, foi a força de um amor literário que fez do Pereira um tipo com coragem para bater à porta de uma casa recheada de aristocratas lacrimosos, ao Cosme Velho, e dizer: eu li o Machado, eu quero ver o Machado. Onde mora este tipo de coragem? O medo é uma coisa que não resiste ao teste da lógica nem ao teste do tempo, vem do corpo, é instintivo como fugir de uma fera. O nosso corpo coloca-nos no lugar da presa, com breves exceções terríveis, como alguns dias negros em campos de batalha ou em comportamentos para-humanos desempatizados, sacanas. Se fosse possível trocar o medo pela confiança irreprimível, ainda assim o medo ganha em prudência da gestão dos homens, mantém uma ordem podre que é uma ordem afinal. Os nossos heróis morrem ou morreram e não tivemos uma única palavra, nem sequer para agradecer, muito menos para, olhando nos seus olhos, perguntar: como é que se faz tudo isto?, referente oculto. Os livros e os filmes ficam debaixo de pilhas de pó, breve estaremos também nós na pilha do pó, e sem um estremecimento que faça vibrar as cordas vocais do mundo, sem um arrepio que produza uma biografia. A vida realmente define-se não pelos medos que sentimos mas pela nossa atitude apesar do medo, e eu conheço quem saia todos os dias de casa, depois de noites mal-dormidas, crises económicas, a ver se arranja o sustento para comprar o pão, literalmente o pão de cada dia. O senhor P. trabalha 400 horas por mês, entre um emprego fixo, como marceneiro, e todas as outras horas ao volante de um automóvel, como motorista. É explorado e abusado, vítima de uma indignidade a que ninguém, ainda para mais alguém com já provecta idade, se deveria ver sujeito. Tem rotinas estáveis, a recibos verdes há várias décadas, e ninguém se lembra de uma falta injustificada, uma ausência de última hora, uma recusa de ficar um pouco mais. O senhor P. é um herói sem medo que ouve rádio, paga impostos, anda de transportes públicos e reserva para o dia de ano novo o direito a uma folga especialmente prazerosa, a alegria de dizer ao patrão no tom mais solene: dia 1 não posso vir trabalhar. E o cabrão do patrão ainda vai ver se, eventualmente, mediante alguns ajustes, isto e aquilo, talvez haja um aberta para que P. fique no sofá enquanto há sol lá fora e possa ver, à rara luz do sol, o formato da mobília que não se lembra de ter comprado, a televisão quase por estrear, e o rosto da filha, surpreendentemente adulta, estás uma mulher, o tempo passa a correr. O senhor P. não se lembra do último romance que leu, prefere olhar de soslaio a capa das revistas na estação de serviço onde pára para mijar, um cafezinho antes de seguir viagem. Delira quando a rádio traz aquela canção dos Xutos que a mulher gosta muito, cantarola até, e reduz o volume quando a atualidade informativa traz a voz de políticos, farinha do mesmo saco, não fazem nada pelo povo. E daqui olhando o senhor P., conhecendo-lhe os calos nas mãos, as dores lombares, o salário de miséria, é difícil discordar. Se corresse hoje a notícia da morte iminente do Lobo Antunes ou da Lídia Jorge, o senhor P. não encontraria na agenda um período para se ir despedir deles. Nem saberia o local apropriado para tal concílio. Nem o nome de um único livro de tão célebres autores. Eles vivem num mundo à parte, em universos distintos, a quinze minutos de carro se não houver trânsito na ponte. Mas há sempre trânsito na ponte.